Sardinha d'Águeda!
Era uma vez...
É assim que qualquer conto começa... no entanto o conto que vos vou apresentar começa com uma pregão: “ Sardinha d’Águeda!”
Era assim que o almocreve Jacinto anunciava a sua chegada as aldeias e vilas da beira interior nas faldas da Estrela!
E perguntarão... mas em Águeda há mar para pescar sardinha?
Então eu vou responder-vos com este pequeno conto...
Mestre Ezequiel saíu da caverna do mercantel bebeu um gole de água da moringa e despertou os seus homens que dormiam no alpendre de lona à ré...
O sol começava querer nascer por detrás das Gafanhas.
O mercantel já carregado de sal aguardava as caixas do peixe que a companha da Costa Nova pudesse ter cercado nessa madrugada.
Mestre Ezequiel ajustou o gabão de burel e cingiu a cintura com uma ponta de corda. As manhãs estavam frias...
Os barqueiros depois de terem comido uma malga de caldo quente preparada pelo Manecas, o mais jovem da tripulação, arregaçaram as calças, esfregaram os olhos e enfiaram a boina...
No cais apareceu então um carroço conduzido por dois homens. Um deles dirigiu-se a Mestre Ezequiel: “Ò Mestre hoje saiu sardinha e petinga! Leva tudo?”
“Ò Toino ajuda aí a meter os caixas por cima do sal e cobre-as com o encerado”, retorquiu o mestre como resposta.
A carga estava completa era tempo de zarpar e bolinar pela Ria até Cacia...
“Zé-Laré desfralda a vela e vamos pró Vouga...”, diz-lhe mestre Zeferino...”
A ria era de prata e apenas uma leve neblina pairava sobre as águas... o silencio, esse era de ouro, nem a ronca do Farol da Barra se fazia ouvir... apenas a guarda de honra das gaivotas perturbavam esse silencio com um ou outro grasnar... e o mercantel lá deslizava imponente fazendo o caminho já tão conhecido...
Ao chegar à foz do Vouga avistaram outra embarcação, uma bateira murtoseira que igualmente se aproximava para entrar no Vouga e rio acima navegar até ao Cais das Larangeiras em Águeda ou, um pouco mais acima, ao Souto do Rio ou ao Cais dos Pepinos em Bolfiar...
... * ...
Entretanto lá longe nas serranias do Caramulo...
Jacinto conduzia a sua récua de mulas e machos...
Tinham atravessado Alcobar vindo da beira interior e depois de ter pernoitado nos Carvalhos das Trocas, ali perto da Maçoida, onde se havia encontrado com outros almocreves e suas récuas, iria descansar os animais nos currais de Assequins para no dia seguinte, já carregados da prateada sardinha e do sal, empreenderem a viagem de regresso... serra acima...
...*...
Mas voltemos ao rio...
De velas enfunadas deslizavam pelas águas calmas do Vouga. Passaram Eixo... em cujas margens bandos de mulheres trabalhavam nos campos... aproximaram-se de Eirol e breve deixariam o leito do Vouga para entrarem no do rio Águeda, um pouco mais estreito e a exigir a mestre Zeferino mais cuidado ao leme... mas ele conhecia aqueles rios como a palma das suas mãos...
Passaram pela entrada do rio Cértima que deitava as suas águas já misturadas com as da lagoa Pateira no leito do Águeda... e já nos campos de Travassô com um caudal inferior o Toino e o Zé-Laré tiveram de saltar para às margens e cada um com um adival, atado na proa puxaram o mercantel naquela zona mais estreita e de caudal inferior... Enquanto o Manecas e o Chico-Laré ajudavam com as varas...
Passado esse obstáculo e recolhidas as cordas voltaram a deslizar rio a cima e ao chegar a Óis, por falta de vento tiveram de usar as varas, o que Zé-Laré e Toino usavam com destreza correndo as bordas da embarcação com seus pés descalços e calças arregaçadas...
Em breve avistaram os campos de Recardães e do Casaínho e de velas enfunadas avistaram três barcos que desciam o rio na sua direção... pareciam Galés Romanas pejadas de riquezas, só que neste caso a carga eram as riquezas que a terra dava: produtos agrícolas: aboboras, pepinos e laranjas, muitas laranjas... e também lenha das serranias do Caramulo...
...*...
Jacinto com os machos aparelhados estava atento e, mal viu as velas a assomarem aos carvalhos de Paredes, pôs a récua em marcha e a campainhar em direção ao Largo da Senhora da Boa Morte atravessando a Rua de Cima, fazendo com que os comerciantes viessem à porta ver tal desfile que se repetia sempre que os almocreves desciam ao burgo...
Os barbeiros deixavam a barba dos clientes a meio!!!
No Largo a azáfama já era muita!...
Sardinheiras, salineiras, contadeiras e regateiras posicionavam-se para a chegada dos barcos...
...*...
Mestre Ezequiel vinha de pé na ré e com destreza manejava o cordame do leme e fazia o seu mercantel parecer ainda mais imponente com a sua vela branca enfunada...
iriam parar no Cais das Laranjeiras um bom par de horas... descarregar a maior parte do sal e da sardinha...
depois... retemperar forças na tasca do Ti-Manel Batoque na Rua do Barril, onde os esperava uma sopa de feijão vermelho com umas batatas, nabo e couves esfarrapadas e um naco de carne gorda, que deixaria a saborosa gordura no pedaço de broa que comeria com satisfação...
e uma picheira de vinho, pois claro!
Depois teriam de baixar o mastro para passar a ponte e de novo montá-lo para subir rio acima até Bolfiar...
Lá, estaria o velho almocreve de S. João do Monte, o Ti-Ernesto, que com as suas mulas iria serra acima distribuir sardinha e sal por todas as aldeias caramulenhas...
No Cais dos Pepinos carregaria o que houvesse, talvez abóboras, talvez mel... e depois no Souto do Rio faria a carga de lenha para Aveiro...
Mas voltemos atrás...
O mercantel manobrou e acostou ao Cais das Laranjeiras. Os peixeiros saudaram Ti-Ezequiel e aprestaram-se a descarregar as caixas de sardinha. Oito delas foram directamente para o Ti-Jacinto, que as carregou nos machos e apenas duas sobraram para as sardinheiras distribuírem pelas suas canastras e partirem para a Vila ou suas aldeias apregoando “Sardinha Fresquinha!”...
Entretanto as salineiras de canastra à cabeça andavam num corrupio a descarregar o sal que levavam para o armazém do comerciante...
...*...
A carga do Ti-Jacinto era especial... era destinada à beira interior e chegaria quiçá ao Fundão!
Atravessaria montes e vales por caminhos já conhecidos com os seus machos e mulas sempre a campainhar...
Em muitas aldeias e vilas das abas da Serra da Estrela a sardinha chegaria e dado a origem onde o almocreve Jacinto a havia carregado seria cognominada SARDINHA D’ÁGUEDA!
João Carlos Breda
(fonte histórica: “Águeda” de Adolfo Portela)
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