A Rua da Cancela...
“É lindo de ver, nas temporadas de inverno. Como esse rio, mansinho e humilde corre, trepa irozo aos cambalhões e aos botaréus da Villa, ei-lo aí vai, ao longo de algumas ruas, de porta em porta e de lojão em lojão, a cumprimentar os moradores, com a sem cerimónia d’um velho hospede que se espera todos os anos. E entra, e instala-se com comodidade, ou seja na rua de Além da Ponte ou na Rua de Baixo, e por lá se deixa ficar, às vezes dois dias e mais”.
(Adolfo Portela, in Águeda).
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Assim era e continua a ser... as águas vêm de mansinho e tomam conta de tudo como um velho senhor resgatando o seu feudo...
Naquele ano, face à chuva incessante que caiu nas serranias, rapidamente o caudal do Águeda engrossou e transbordou e com ele a Ribeira do Ameal e o campo de Assequins transformou-se num lago.
Na vila ouvia-se amiúde dizer “o rio vai gordo! “ e a baixa entrou em alvoroço. A Rua da Cancela foi a primeira a ser visitada sendo as lojas rapidamente alagadas e de seguida a Rua de Baixo. Quem estava em casa subiu ao primeiro andar e lá ficou retido.
Foi o caso de Arminda na Cancela, tinha as filhas em casa mas, a sua aflição foi, a falta de pão para dar às meninas. O forno da Libânia Loura era ali duas casas à frente mas a água inundou tudo e não houve pão para ninguém...
Arminda foi à janela, olhou a rua transformado em rio e chamou pela vizinha da frente: “ Ò Ti-Iria, Ò Ti-Iria!”
“Diz lá Arminda?” questionou a vizinha assomando à janela.
“A água continua a subir e não tenho pão em casa para dar às minhas meninas!...”, disse-lhe a Arminda com a voz inquieta.
“Espera aí, não te aflijas... Vou já ver o que se arranja.”
E não tardou a voltar à janela com algo envolto numa toalha branca.
“Sai da janela que vou lançar! Olha é um pão-doce da fornada de ontem da Loura!”
E num lance atirou o embrulho que entrou na janela do outro lado da rua.
“Que bom... Deus lhe pague” disse a Arminda desatando o nó da toalha e olhando o belo e dourado pão!
Na Rua da Cancela (hoje Rua Soberania do Povo) havia o forno dos Guerra, onde Libânia Guerra, mais conhecida por Libânia Loura e mais tarde pelo casamento Libânia Breda, confecionava a doçaria de Águeda... Pão-doce, folares, sequilhos, suspiros, cavacas e os deliciosos pasteis de caixinha cuja receita a irmã de sua madrinha, a Ti-Quitéria, havia trazido do Convento de Lorvão, onde fora serviçal, e que se viriam a transformar nos deliciosos Pasteis de Águeda...
Felizmente veio a maré vaza e a cheia enfim escoou-se rio abaixo, voltando à normalidade as Ruas da Cancela e Vasco da Gama...
Retalhos de Águeda Antiga (baseado numa memória da Tia Lídia).
By Joao Carlos Breda
Fevereiro 2019
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