Sardinhas cor da prata!

A ti-Zefa na sua banquinha do peixe à porta da venda controlava a pouca freguesia mergulhada na sua cegueira... A garotada corria pela rua perseguindo o camisola amarela que com um pausito fazia rodar um velho e ferrugento aro de bicicleta... um brinquedo de luxo no bairro de S.Pedro... Maria aproximou-se da banca do peixe e perguntou pela sardinha. Ti-Zefa reconheceu a voz da freguesa e questionou: “ Vieste cá cima Maria? Quantas queres? Hoje está barata!” “Vim, vim cá trazer um carrego de mato! Olhe, conte quatro, uma para mim outra para o garoto e duas para o meu Reinaldo que foi trabalhar para Rio Côvo e deverá vir esfomeado”.
O bairro de S.Pedro era naquele tempo uma única rua... começava na Capela do Santo Chaveiro do Céu, que dava o nome ao bairro, e acabava na linha do comboio do Vale do Vouga. Havia ainda as lapas mas poucos por lá viviam ainda... Mas o bairro tinha uma fábrica que dava emprego a uma dezena de locais... era a fábrica dos bonecos, a olaria do Sr. Constantino e da Senhora Aninhas... Como eram lindas as miniaturas e os bonecos de barro vermelho ali produzidos...
Maria regressou a casa e nessa noite ia preparar para a ceia do seu Reinaldo as prateadas sardinhas... Mexeu o fogo da lareira e acirrou-o juntando-lhe uns cavacos e uns paus trazidos nessa manhã do pinhal, preparando o borralho para as sardinhas... na panela de três pernas despejou as batatas que trouxera no regaço... A sirene da fábrica do Canário tocou. Eram já 6 horas... Em breve o Reinaldo entraria porta adentro. Mas a noite foi caindo e sinais do Reinaldo nem nada. Maria preparou a janta para o filho, tirando a pele às batatas e juntando-lhe a sardinha que tirou das brazas, que com a sua gordura as temperou... Estava a ficar tarde e Maria disse para o filho: “ Manel, vai lavar os pés e vai dormir... amanhã há escola!” O garoto já ensonado lá obedeceu, sem antes ir arrumar o caderno, o livro e a ardósia na sua saca azul de ganga, que se encontravam junto à candeia onde tinha acabado de fazer a cópia... O homem não aparecia e Maria decidiu também ir dormir, não sem antes tirar a pele às restantes batatas e tê-las coberto com as duas sardinhas assadas, cobrindo o prato com outro e os embrulhando numa toalha para manter pelo menos o morno... Deixou pousado no banco do marido junto ao borralho. Antes de se ir deitar juntou as espinhas e as peles das batatas num outro prato para na manhã seguinte dar à porquinha que estavam a cevar num curral na traseira da casa... O Reinaldo chegou e quebrou o silêncio da casa atirando as botas para um canto... a fome era mais do que a sede e foi num repente que varreu o prato da comida... e foi dormir!
O galo já cantara e o sol envergonhado lá ia espreitando através da folhagem da macieira em flor... Maria entrou em casa com o cântaro à cabeça. Tinha ido à água à fonte! Reinaldo com a tenaz punha uma brasa na panela para baixar a bôrra do café... O Manel com um naco de broa na mão esperava pela sua caneca! Maria, pousou o caneco e falou para o marido: “Ontem chegas-te lindo e sem fome! Nem comeste a ceia!?” “Não comi? Comi e comi bem! Comi tudo!” “Oh homem o teu comer está aí embrulhado nessa toalha branca! Queres ver que comeste os meus restos e do garoto que eram para dar à russa!” Reinaldo olho-a surpreso e respondeu: “Pois olha que estava tudo muito bom!”

Comentários

  1. Ó João, o nosso Pai contava essa passagem, verdadeira, mas era o Raimundo, trabalhava no Outeiro e morava nas Lapas de S.Pedro. E no final o Raimundo depois da mulher dizer que ele tinha comido o que era para o porco, respondeu: -E atão o porco não é um animal como a gente.
    Álvaro Breda

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