As armações do Crespo!...
A manhã estava fresca e o sol brilhava timidamente...
A caminho das Barreiras não era fácil seguir as passadas de meu pai. Os meus dez anos ainda não permitiam tal andamento... Mas lá ia... e quase que nem dava para apreciar o pinhal frondoso que nos ladeava pela esquerda nem aquele curioso e alto muro todo feito de pedrinhas que nos acompanhava pela direita...
Quando chegamos a casa do primo Manuel já este havia semeado no pinhal fronteiro à sua casa as peças dos arcos da nova armação que iria ornamentar as romarias e festas da região, já com início na segunda-feira de Páscoa com a Festa do Pau em Assequins em honra de Nossa Senhora da Graça...
Todos os anos era necessário renovar e restaurar as armações... As deste ano seriam bem coloridas com grandes florões enlaçados por uma ramagem verde e as laterais retangulares com elegantes garças bailando... Eram decorações idealizadas por meu pai que, cuidadosamente, desenhava no pano cru das diversas peças com o auxílio de moldes de cartão ou, no caso das figuras mais delicadas, através de papel vegetal e lápis de carvão.
Corria o ano de 1962, ainda se falava da ex-colónia India Portuguesa... Dos ecos vindos de longe e das emissões radiofónicas: “enquanto se ouvirem as bombardas de Diu e os sinos de Goa a Índia será Portuguesa”... Mas não foi e essas possessões: Goa, Damão e Diu foram invadidas em Dezembro de 1961 e dos milhares de soldados portugueses lá feito prisioneiros nada se sabia... Estariam vivos? Regressariam a Portugal”?
Este pensamento levou-me a questionar meu pai sobre o local onde o Capitão Vasques a 27 de Janeiro de 1919 havia caído morto por estilhaços de uma granada do fogo dos monárquicos do norte naquele que foi o Combate das Barreiras, ali naquele pinhal, hoje semeado de peças das armações e que imaginei serem de corpos dos soldados fieis à República comandados pelo dito capitão, e que aqui estancaram o avanço das forças monárquicas comandados por Paiva Couceiro...
Meu pai ocupado a dar instruções ao Raúl, Albino, Almeida e Benedito, os colegas da Fábrica do Outeiro que se haviam disponibilizado para naquele sábado virem ajudar nas pinturas dos arcos de festa (a Armação do Crespo), despachou-me dizendo para eu procurar um pouco mais abaixo... Haveria de encontrar uma placa em cimento, que sinalizava o preciso local onde o Capitão Vasques perecera...
Como não quero que os meus amigos fiquem com informações imprecisas sobre o que foi na realidade essa parcela da História de Portugal e da importância do Combate das Barreiras, aqui vai o artigo publicado na Soberania do Povo, pelo nosso historiador Dr. Deniz Ramos:
A 19 de Janeiro de 1919, Paiva Couceiro, a quem se ficaram a dever outras insurreições para restaurar o regime monárquico, proclamou a Monarquia no Porto. Na chefia da Junta Governativa do Reino, repôs a Carta Constitucional e substituiu os símbolos republicanos, o Hino Nacional A Portuguesa, a Bandeira, a moeda, a Guarda Nacional Republicana, que passou a denominar-se Guarda Real. No norte, com excepção de Chaves, a sublevação couceirista alastrara por Viana, Braga, Guimarães, Vila Real, Bragança, Lamego e Viseu. A 23 de Janeiro, Ovar caiu às mãos da coluna monárquica comandada por Corte Real Machado e, a 24, essa mesma coluna ocupou a vila de Estarreja, onde hasteou a bandeira azul e branca. A linha do Vouga iria servir de tampão ao avanço de Paiva Couceiro, impedindo a junção das suas forças aos revoltosos do sul do país. Em Lisboa, os revoltosos de Aires de Ornelas foram subjugados em Monsanto a 24 de Janeiro, mas foi a 27 de Janeiro, ao travar-se no alto das Barreiras a aventura restauracionista, que se deu a viragem decisiva, passando a iniciativa a pertencer, desde então, às forças leais à República.
Sucesso do Combate de Águeda
O êxito das forças fiéis à República em Águeda na contenção dos monárquicos foi repetidamente salientado em Boletins de Informação do Quartel-General da 2.ª Divisão, difundidos pelo Governo Civil de Viseu 1.. Às 12 horas de 28 de Janeiro, o optimismo republicano era já evidente: “Uma coluna dos revoltosos, que se dirigia para Coimbra, foi completamente desbaratada, ontem, pelas tropas fiéis à República, após renhido combate junto a Águeda. As tropas monárquicas derrotadas, que sofreram importantes baixas, fogem para o Norte, desnorteadas e dispersas. As deserções são inúmeras e, para lhes fazer face, os revoltosos forçam a população civil a combater a seu lado, armando-a com o material de guerra dos seus mortos”.
Outras informações desse dia dão conta da importância do sucesso do combate de Águeda: “Forças fiéis, entrincheiradas junto a Mourisca (concelho de Águeda), fuzilaram revoltosos na ponte sobre o Vouga. Infantaria 18 foi esmagada. Durante a noite, passaram na Sernada (bifurcação da linha do Vale de Vouga) mais de 100 fugitivos revoltosos, muitos deles feridos. Aconselhados a seguirem para o confinante Distrito de Viseu, disseram que receavam ser mortos e que só paravam em Vila Real, nas suas casas. Um soldado informou que, na ocasião de as tropas fiéis iniciarem fogo das trincheiras, os oficiais revoltosos, não logrando tomar posições, disseram, salve-se quem puder”.
A 29, em outro boletim evidencia-se que a vitória de Águeda contribuiu para a desmoralização dos monárquicos, até aí em vantagem militar no interior beirão: “Confirma-se a derrota dos revoltosos em Águeda, onde sofreram numerosas perdas, cerca de 300 baixas. (…) Consta, pelas informações enviadas pela nossa Cavalaria de cobertura, que o moral das tropas revoltosas que ocupam Lamego está já bastante abatido”.
E acrescentava-se no comunicado: “Os rebeldes continuam exercendo violências sobre as populações, forçando os homens a combater, saqueando as habitações e incendiando as dos adversários”.
O fim da Monarquia
Os boletins oficiais sucederam-se diariamente, dando notícias de deserções e atrocidades cometidas pelos revoltosos. Em 30 de Janeiro, 6 revoltosos, fugidos do combate de Águeda, declararam às autoridades “que marcharam iludidos, afirmando-se-lhes irem fazer a apresentação a Lisboa onde, como em todo o resto do país, excepto Aveiro, tinha sido implantada a monarquia; que muitos soldados fgiram sem sequer terem feito fogo, debandando logo que se viram abandonados dos seus oficiais; que a alimentação era insuficientíssima e que muitos outros soldados desertarão logo que se lhes ofereça ensejo”.
Mesmo descontando os exageros da contra-informação republicana, a verdade, e todos os especialistas reconhecem-no, é que o começo do fim da Monarquia do Norte, instaurada no Porto a 19 de Janeiro, iniciou-se em Águeda, nas Barreiras, no dia 27 de Janeiro. Que os combates foram renhidos, confirma-se pelo elevado número de perdas entre os monárquicos, 300 mortos e feridos, apesar da gritante desproporção dos efectivos envolvidos nas primeiras horas do recontro. A coluna avançada de Paiva Couceiro, que partira do Porto a 22 de Janeiro, comportaria 1500 homens da guarnição daquela cidade: esquadrões de cavalaria, uma bateria de artilharia, forças de infantaria 6 e 18, Guarda Real e um troço do Real Batalhão Académico do Porto. Por sua vez, o destacamento republicano que se opôs aos revoltosos, comandado pelo tenente-coronel Carlos Luizelo Godinho, Comandante do Regimento de Cavalaria 5 de Évora, empenhou na linha de fogo, durante bastantes horas, efectivos da ordem dos 200 homens, entre os quais o 3.º Batalhão de Infantaria 28, sediado em Águeda. Só ao fim do dia, e à medida que os reforços iam chegando, é que a força republicana contou com 776 soldados de todas as armas. Além do Capitão Vasques, do Regimento de Infantaria 28, morto por estilhaços de uma granada inimiga, as baixas do destacamento republicano foram insignificantes, enquanto os couceiristas sofreram pesadas perdas em homens e material. DENIZ RAMOS
Bem, mas voltemos ao trabalho dos rapazes da Fábrica do Outeiro que de pincel na mão lá iam colorindo as flores e ramagens da nova armação do Manuel Crespo...
Eu, entretanto, já havia regressado para junto do meu pai, com ar ofegante e pernas todas arranhadas pelo tojos... é que após ter encontrado a tal lápide de cimento pareceu-me ter visto soldados a aparecer por detrás dos pinheiros e... ò pernas para que vos quero!...
Meu pai vendo-me chegar tão ligeiro disse-me com ar autoritário:
“João Carlos vai à Ti-Rosa e pergunta se falta muito para o comer estar pronto? “
E lá fui eu casa adentro: ” Ò Ti-Rosa, o meu pai pergunta se falta muito para o comer estar pronto?”
“Oh menino”, retorquiu a Ti-Rosa, “diz ao teu pai que a galinha está a acabar de estufar, depois é só meter o arroz e o sangue, mas eu aviso para virem para a mesa quando meter o arroz. O Arroz de Molho Pardo quer-se à Malandrão!”
E lá eu fui dar a resposta, sem não antes passar pela cozinha ir ver a Ti-Rosa Floca de volta do tacho a zelar pelo estufado das galinhas e cheirava que era um regalo! E lá estavam os ingredientes usados: cebola, alho, sal, louro, piri-piri e numa malga o sangue e o vinagre... e o arroz carolino ali dos arrozais de Paradela no Cértima.
Chegou a hora dos comensais porem as pernas debaixo da mesa improvisada no armazém do Crespo... O primo Manuel tirava a rolha a um garrafão e enchia as picheiras...
Neste armazém havia de tudo e o Ti-Fataça lá andava, no seu vagar, a ajeitar os tecidos de cetim de pregas que deveriam ornar os altares e os andores dos Santinhos em festa...
A Tia Assunção, que sempre conheci velhinha, também lá estava a cuidar com desvelo dos vestidinhos de anjinho que haveriam de alegrar as procissões...
Mas voltemos à mesa e ao tacho do Arroz de Galo à Malandrão... estava bom, não estava?
O Raul Lanheses gabava-se da bela cocha que tinha comido e o Manuel Benedito queixava-se que só comera espinhaço!... A malta ria-se e bebiam mais um copo!
Na verdade o arroz estava uma delícia... a Ti-Rosa Floca (da Venda Nova) era uma excelente cozinheira!
E ouviu-se o meu pai:
“Rapazes, bebam com calma, que ainda há trabalho para acabar...”
“Ò João este é de três estalos”, dizia o Lanheses, “a tinta até vai correr melhor!”
Retalhos de Águeda Antiga
By João Carlos Breda
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